Golpe de estado, destruição de patrimônio e mais: extremistas cometeram ao menos cinco crimes durante invasão em Brasília

Manifestações antidemocráticas e invasões estão enquandrados na legislação como atentados contra o Estado Democrático de Direito.

Por R7 10/01/2023 11h05
Golpe de estado, destruição de patrimônio e mais: extremistas cometeram ao menos cinco crimes durante invasão em Brasília

Os mais de 1.500 extremistas presos após invasão e depredação dos prédios do governo na praça dos Três Poderes, em Brasília, podem ter de responder por pelo menos cinco crimes. A informação foi confirmada por advogados criminalistas, professores de direito penal e também pelo ministro da Justiça, Flávio Dino.

A medida também é válida para as pessoas que forem identificadas nas investigações, caso seja comprovada participação nas manifestações, financiamento ou incitação dos atos de vandalismo.

O ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, policiais e outros agentes de segurança também podem ser responsabilizados, se ficar provado que prevaricaram, ou seja, deixaram de cumprir seu dever por má-fé ou qualquer tipo de interesse.

"A visão que temos, que a Polícia Federal está concretizando, é que nós vivenciamos ontem um conjunto de crimes. Temos o crime de golpe de Estado, este é o nome no Código Penal; tivemos o crime de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito; tivemos crime de dano, inclusive qualificado, porque é em patrimônio público e tombado; tivemos associação criminosa; tivemos lesões corporais, inclusive em relação a profissionais de imprensa, que foram atacados e queremos nos solidarizar", declarou Flávio Dino, em entrevista coletiva.

O ministro afirmou que esse conjunto de crimes abre múltiplas possibilidades de responsabilização dos vândalos. "Quem tiver dúvidas, vá até o artigo 29 do Código Penal, que trata do modo como uma pessoa é identificada como coautor ou partícipe de um crime. São esses dispositivos do Código Penal que estão sendo aplicados, associados ao Código de Processo Penal, que define o conceito de prisão em flagrante. Todas essas providências serão comunicadas ao Poder Judiciário, que vai adotar as providências que considerar cabíveis. Aí, não nos compete opinar", disse.

"O enquadramento no crime de golpe de Estado é indubitável", aponta o advogado Alberto Zacharias Toron, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de processo penal da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

"Aquelas pessoas transpuseram as fronteiras da livre manifestação e partiram para atos de depredação. Em uma circunstância normal, o que poderia ser um crime de dano ao patrimônio público ganhou outro significado, de caráter político, com vistas à derrubada do poder constituído. Foram ações que atentavam ao Estado democrático de Direito, uma sucessão de crimes contra as instituições democráticas, de forma violenta", explica.

No Código Penal, na seção sobre os crimes contra o Estado democrático de Direito, definidos pela lei nº 14.197, de 2021, o capítulo 2 trata dos crimes contra as instituições democráticas:

. o artigo 359-L tipifica a abolição violenta do Estado democrático de Direito: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais", cuja pena prevista é reclusão por período de quatro a oito anos, além de penalidade correspondente à violência praticada.

. o artigo 359-M. define o golpe de Estado: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”, que implica reclusão de quatro a 12 anos, além da pena correspondente à violência.

"Nos discursos dos manifestantes, esses dois crimes ficam bastante evidenciados, mas há uma discussão no meio quanto à abolição violenta do Estado democrático de Direito. Alguns especialistas colocam essa acusação em dúvida, porque a abolição do Estado não chegou a acontecer, já que as instituições continuam funcionando", afirma Helisane Mahlke, professora de direito internacional público e de ciência política da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Patrimônio público

Helisane diz que, com a conclusão da perícia que está sendo feita pela Polícia Civil e o levantamento de tudo o que foi danificado na invasão, será possível falar com mais precisão sobre todos os crimes cometidos pelos manifestantes extremistas. "Apenas pelo que foi possível ver em algumas imagens, pode-se falar em dano qualificado, que está previsto no artigo 163, inciso 3º do Código Penal, por se tratar de instalações do governo ", justifica.

A pena prevista por "destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia" é a detenção, de um a seis meses, ou multa. Quando o alvo da depredação é patrimônio da União, do Distrito Federal, estado, município ou de qualquer órgão público, a detenção pode ser de seis meses a três anos, e ainda ser acrescida de tempo ou valor adicional correspondente à violência praticada.

A professora também cita o crime contra o patrimônio cultural, que está na lei nº 9.605/1998, no artigo 62, e prevê multa e reclusão, de um a três anos, para quem destruir, inutilizar ou deteriorar: (I) bem protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, ou (II) arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial.

"Há, ainda, o crime de furto qualificado, devido aos diversos objetos faltantes, que foram subtraídos dos locais invadidos. Foi constatada, infelizmente, a ausência de objetos, sem contar tudo o que foi danificado e está perdido, como alguns presentes de chefes de Estado, muito antigos, de mais de cem anos, que nem podem ser restaurados", lamenta Helisane que, por último, menciona o crime de associação criminosa, previsto na lei nº 12.850, de 2013.

Na legislação (Art. 1º § 1º), a definição é a seguinte: "considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional".  

Para o advogado criminalista José Beraldo as acusações são excessivas. "Não há que se falar em associação criminosa, porque aquele pessoal se reuniu para um protesto político, e não com o fim específico de cometer crimes. Algumas pessoas invadiram e destruíram o patrimônio, isso se enquadra no artigo 163 inciso 3º do Código Penal, é um crime de pequeno potencial ofensivo, com pena inferior a 4 anos."  

Pode ser terrorismo?

Tanto o professor Alberto Toron como Helisane e José Beraldo falaram sobre a inadequação de se falar em crime de terrorismo, considerando a forma como ele é descrito na legislação brasileira. 

"A lei nº 13.260 de 2016, que regulamenta o que são atos de terrorismo, diz o seguinte, em seu artigo 2º: 'o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública'", fala Toron.

"Por essa descrição, como a motivação dos atos do domingo foi política, eles não poderiam ser considerados como terroristas", ensina.

Essa é a mesma opinião de José Beraldo: "não se pode falar em crime de terrorismo porque a finalidade era política. Além disso, ninguém tinha bombas ou armamentos nas mãos. Não houve risco à nação", diz o advogado. "Houve vandalismo, não há terrorismo ou associação criminosa. Ninguém pode permanecer enclausurado por isso", completa.

A principal dificuldade, segundo Helisane, é exatamente a tipificação "estanque" de terrorismo na lei, que impede o enquadramento de diversas ocorrências como atos terroristas. "A lei anti-terrorismo foi muito discutida e tentou adequar a legislação nacional a diferentes documentos internacionais. O Brasil aderiu a diversas normas mundiais. Mas precisa ser revista, porque vivemos uma realidade que não existia até 2016. Por isso existe a polêmica de aplicar ou não a lei para casos como esse", explica. 

A professora diz que, se o Judiciário quiser que as manifestações violentas e que ameaçam a democracia sejam consideradas como terroristas, há duas opções: interpretar a lei atual de modo ampliado, para abraçar a tipificação mais abrangente, o que implica em "colocar" palavras na lei, ou "pedir ao Congresso para rever a legislação, o que leva mais tempo e não vai valer para esse caso, porque a lei não pode retroagir", comenta.

A vantagem de caracterizar os atos antidemocráticos como terrorismo é esse tipo de crime ser inafiançável, com pena entre 12 e 30 anos.

Quem pode ser responsabilizado?

"Todos aqueles que participaram do ato, direta e indiretamente, são responsáveis e devem responder por isso", afirma Toron. "Os participantes diretos são as pessoas que foram, invadiram e quebraram coisas. Indiretamente, considera-se a participação dos mentores, financiadores e instigadores, que não podem ficar de fora, e são os que têm o propósito ilegal."

Na opinião de José Beraldo, houve, claramente, negligência na segurança. "Não posso dizer que os agentes prevaricaram, porque ninguém esperava uma invasão, não foi algo preparado, ninguém tinha a intenção de cometer crime. Mas houve falha na segurança no local onde fica o presidente da República, houve facilitação", avalia. 

Para Helisane, as polícias legislativa, civil e militar erraram, não cumpriram seu papel, assim como o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. "Eles podem ter sido surpreendidos, mas há suspeitas de prevaricação ou de cumplicidade", comenta.  

Toron diz que o batalhão da Guarda Presidencial, que deveria proteger o Palácio do Planalto, não fez o que deveria. "Onde eles estavam? Parece que também houve omissão da autoridade militar. Muitas explicações ainda precidam ser dadas à nação."  

Além do secretário de segurança, o governador do DF, Ibaneis Rocha, que foi afastado do cargo, tem tido seu papel questionado. "Esse assunto merece muita atenção e cuidado, porque é fácil procurar uma autoridade importante, achar um bode expiatório", alerta Toron.

"Na posse, na semana anterior, a segurança providenciada foi impecável. Agora, o governador tinha um secretário interino, e tem áudio dele dizendo que estava tudo sob controle. Foi a Secretaria de Segurança Pública que autorizou a ida das pessoas à praça dos Três Poderes, o que levou ao vandalismo. É preciso investigar antes de acusar. Não se pode falar do governador como se ele estivesse envolvido com uma organização criminosa, ele tem uma história", fala.

Quanto à incitação dos manifestantes, a professora do Mackenzie diz se tratar de crime tipificado, que está no artigo 286 do Código Penal, definido como "Incitar, publicamente, a prática de crime", com pena de detenção, de três a seis meses, ou multa. Ela considera que Jair Bolsonaro e autoridades próximas a ele podem ser responsabilizados. " Não faltam vídeos com provas de incitação à violência, com membros do antigo governo junto dos manifestantes em QGs do Exército", afirma.  

José Beraldo discorda: "O ex-presidente está fora do país, não pode ser incriminado de forma direta nem indireta. Não houve participação ou facilitação. Ele inclusive protestou em seu Twitter. Portanto, não há que se falar 'bolsonarista' ou de pessoas ligadas ao facismo, é inadequado", finaliza.

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