Economia e Inovação

Por: Sudanês B. Pereira

Economista, com formação na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Mestre em Geografia (desenvolvimento regional) e Especialista em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Experiências no setor governamental (municipal e estadual), setor privado (Associação Comercial Empresarial de Sergipe - ACESE e Federação do Comércio de Bens e Serviços e Turismo - Fecomércio), foi professora substituta no Departamento de Economia na UFS, pesquisadora e uma das fundadoras do Núcleo de Propriedade Intelectual, hoje Cintec-UFS.

Trabalho Fantasma (ghost work) - o que é e qual a sua contribuição para a economia digital

03/05/2021

Eu já escrevi sobre os ecossistemas da força de trabalho e como as empresas possuem hoje diversos arranjos de modalidades de trabalho. O que de fato estamos vendo atualmente é que mais empresas estão contando com ‘não funcionários’ para realizar mais trabalhos; mais trabalho está sendo baseado em tarefas e projetos. Tarefas e projetos podem ser realizados sob demanda, não precisando necessariamente, de empregados em tempo integral para executá-los.

Entre tantos conceitos novos que surgem relacionados à economia digital e ao novo mundo do trabalho, me deparei com um termo muito curioso, Ghost Work, que representa bem, parte significativa dos empregos da economia digital.

Mary L. Gray e Siddharth Suri (2019)[1], conceituam ghost work como trabalhadores fantasmas responsáveis pelo “trabalho humano que movimenta muitos aplicativos de telefones celulares, sites e sistemas de inteligência artificial que podem ser difíceis de ver. Na verdade, muitas vezes é oculto intencionalmente” (p. 7). Ou seja, esse é o trabalho invisível realizado por meio das plataformas digitais, sob demanda.

De acordo com os autores, o trabalho sob demanda envolve tarefas terceirizadas, gerenciadas, entregues e cobradas por meio de uma API - Application Programming Interface, nas transações de trabalho online. O que é mais impactante, é que o trabalho ou o resultado desses trabalhadores invisíveis, está gerando lucros enormes que outros capturam.

Uma API é uma forma de integrar sistemas, ela conecta aplicações. Ou seja, é uma plataforma que permite a integração de determinado software com o sistema de terceiros. Exemplo: Facebook/Uber, Goolge Maps/Sites de hotéis, Sites de e-commerce/operadoras de crédito. Mas, por trás dessas empresas existe uma enorme força de trabalho invisível que faz a gigantesca economia digital funcionar. A figura 1 ilustra como funciona de forma simples o Ghost Work.

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Fig. 1. Exemplo de um Arranjo Ghost Work .jpg

Em outro artigo que escrevi - “o que a tecnologia está fazendo com a economia” -, mencionei o que seria a economia de plataforma. Relembrando aqui, a economia de plataforma é aquela baseada em um ecossistema de software, no qual produtores, consumidores e a própria plataforma, estabelecem um conjunto de relações, não apenas no mundo digital. Segundo Bukht & Heeks (2017) [2], a economia de plataforma agrega modelos de negócios que extraem valor a partir da prestação de dois serviços (ou ambos): plataformas multilaterais (facilita a conexão entre distintos usuários) e plataformas de inovação (ecosistemas digitais).

Segundo Gray e Suri (2019), os ghost workers testam algoritmos, editam páginas, respondem a pesquisas, oferecem feedback e garantem a precisão e adequação do conteúdo online, dessas empresas plataformas. Além disso, os autores advertem sobre algo importante, que é a quantidade de informações humanas envolvidas nos processos online e de inteligência artificial (IA). Como eles dizem, essas pessoas executam o trabalho fantasma e fazem a internet parecer inteligente.

Ou seja, processos aparentemente automatizados para pesquisas e compras na web, são de fato, selecionados e testados por trabalhadores da linha de montagem digital, digamos assim. Os serviços prestados por empresas como Amazon, Google, Microsoft e Uber, funcionam por causa da experiência desta vasta força de trabalho, que realiza trabalhos frequentemente difíceis, e de alta tecnologia.

A própria Amazon tem a sua plataforma para contratação de tarefas, a Amazon Mechanical Turk (Mturk), que é um serviço de crowdsourcing [3]. Os seus usuários, como empresas e pesquisadores, contratam crowdworkers [4], trabalhadores remotos e terceirizados, que realizam tarefas que computadores ainda não são capazes de realizar. O sistema Mturk é operado pela subsidiária da Amazon, a Amazon Web Services. Ver a figura 2. A Microsoft também possui o seu sistema, o Microsoft’s Internal Universal Human Relevance System (UHRS).

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Fig. 2. Amazon Mechanical Turk (MTurk).jpg

A figura abaixo, ilustra de forma simples como a plataforma da Amazon funciona. O MTurk oferece acesso a uma força de trabalho sob demanda por meio de uma interface de usuário flexível ou integração direta com uma API simples.

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Fig. 3. Amazon Mechanical Turk – How it Works.jpg

O artigo “The Brazilian Workers in Amazon Mechanical Turk: Dreams and realities of ghost workers”(2020) [5], mostra os resultados de uma pesquisa com 149 trabalhadores brasileiros da Plataforma Mturk (Amazon). A maioria dos “turkers” brasileiros entrevistados na pesquisa, era branca (64%) e do sexo masculino (66,4%), com idade média de 29 anos.

A pesquisa mostrou que os turkers brasileiros trabalham na plataforma por semana, cerca de 17 horas em média, e mediana de 10 horas. Além disso, cerca de 57% dos turkers brasileiros têm algum tipo de trabalho fora da plataforma. Desse total, 28,9% afirmaram ter carteira de trabalho assinada e 23,5% se identificam como autônomos.

Outro dado interessante mostrado na pesquisa, foi que 44% dos participantes disse que trabalham para algum outro serviço de crowdwork, indicando que a plataforma da Amazon é apenas uma das muitas outras plataformas possíveis de mão de obra digital brasileira, que os turkers usam. Clickworker e Appen foram as duas empresas mais citadas, seguidas pela Figure Eight e Uber. Os turkers brasileiros recebem em dólar.

O trabalho realizado pelos brasileiros lembra bem o trabalho que Gray e Suri (2019) mencionam em seu livro - um trabalho diário cheio de tarefas diferentes e diversas, assim como sem proteção social ou algum tipo de regulamentação.

A conclusão mais específica deste estudo The Brazilian Workers in Amazon, é que os trabalhadores no Brasil, diferentemente de muitos outros países, incluindo os EUA e alguns dos trabalhadores indianos, são duplamente explorados - não apenas seu trabalho é exigente e mal pago, mas eles têm que usar muitos subterfúgios diferentes para obter o seu pagamento, pois a Amazon não faz transferências para a conta bancária, como em outros países. Embora a Amazon aceite trabalhadores do Brasil, seus procedimentos não cobrem os aspectos mais básicos do trabalho, como o pagamento. Ou seja, como não temos uma regulamentação ainda específica para essa modalidade de trabalho, os turkers no Brasil se encontram sem amparo legal.

Em um trabalho muito interessante, Maria Sapignoli (2021)[6] alerta para alguns fenômenos emergentes que precisam ser estudados, entre eles: a) o papel crescente dos profissionais que trabalham no desenvolvimento de tecnologias digitais aplicadas; b) uma maior participação do setor privado em relação aos direitos humanos e na responsabilidade da governança global; c) a invisível tomada de decisão automática pelos algoritmos, que afeta a todos; e d) a criação de identidades de dados, que muda toda vez que novos dados entram no sistema e através da interpretação algorítmica, o cálculo computacional define quem somos.

Toda essa lógica da nova economia é complexa, e o trabalho é a variável mais importante desse fenômeno, pois sem ele nada disso seria possível. Compreender as mudanças sociais e o futuro que essas novas tecnologias produzem - incluindo porque elas são usadas, porque as pessoas confiam (ou suspeitam) delas, como são criadas e finalmente implantadas - são de particular importância em uma época em que a IA está se tornando uma realidade e uma ferramenta vital para inúmeros negócios.

Mas não devemos esquecer, como a Lilly Irani (2016) [7] falou, “a IA é feita por pessoas e para as pessoas”, portanto, é a competência dos trabalhadores das empresas de tecnologia que fazem toda essa dinâmica funcionar. Trabalhadores altamente qualificados treinam a máquina e fazem o trabalho que a inteligência artificial não faz.

Por fim, com base no que foi exposto acima, os ghost work faz parte de um mercado em expansão, porém desregulamentado. É preciso regular as condições de trabalho das pessoas que fazem a IA funcionar.

Penso que a pergunta sobre o que é o ghost work e qual a contribuição deles na economia digital foi respondido.

Até o próximo artigo!

[1] Mary L. Gray e Siddharth Suri. Ghost Work: How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass. Houghton Mifflin Harcourt, 2019.

[2] Bukht, Rumana & Heeks, Richard. Defining, Conceptualising and Measuring the Digital Economy. 2017. In Centre for Development Informatics. Global Development Institute, SEED. University of Manchester.

[3] Cowdsourcing é uma espécie de terceirização coletiva. Um modelo de produção que se utiliza de conhecimentos coletivos e voluntários (recrutados especialmente na internet) para solucionar problemas do dia a dia, desenvolver novas tecnologias, criar conteúdo ou prover serviços.

[4] Trabalhadores, ou membros registrados na plataforma, os “crowdworkers”. Cientistas computacionais chamam de “computação humana” – human computation.

[5] The Brazilian Workers in Amazon Mechanical Turk. Moreschi, Bruno; Pereira, Gabriel; Cozma, Fabio G. Revista Contracampo, Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, Edição Vol. 39, número 1/2020.

[6] The mismeasure of the human - Big data and the ‘AI turn’ in global governance. Anthropology Today Vol. 37, No 1, February 2021.

[7] Irani, Lilly. (2016). White House / NYU AI Now Summit Talk: “The Labor That Makes AI Magic”. Retrieved from: https://quote.ucsd.edu/lirani/white-house-nyu-ainow-summit-talk-the-labor-that-makes-ai-magic/