Economia e Inovação

Por: Sudanês B. Pereira

Economista, com formação na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Mestre em Geografia (desenvolvimento regional) e Especialista em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Experiências no setor governamental (municipal e estadual), setor privado (Associação Comercial Empresarial de Sergipe - ACESE e Federação do Comércio de Bens e Serviços e Turismo - Fecomércio), foi professora substituta no Departamento de Economia na UFS, pesquisadora e uma das fundadoras do Núcleo de Propriedade Intelectual, hoje Cintec-UFS.

Multilateralismo para Remodelar o Mundo Pós-Covid-19

02/08/2021

Por que o multilateralismo deve remodelar o mundo pós-COVID-19? porque os desafios globais como pandemias, mudanças climáticas e proliferação nuclear, requerem soluções globais.

Essa é a ideia do relatório[1] lançado em junho de 2020 pelo grupo The Elders em defesa do multilateralismo, para marcar o septuagésimo quinto aniversário das Nações Unidas.

The Elders foi fundado por Nelson Mandela em 2007, é um grupo independente de líderes globais que trabalham tanto publicamente quanto por meio da diplomacia privada, para resolver conflitos, promover a paz, a justiça e os direitos humanos. Entre os membros estão Ban Ki-moon, Fernando Henrique Cardoso, Jimmy Carter, Desmond Tutu, Kofi Annan e outros.

Basicamente, o multilateralismo baseia-se na necessidade de países com pontos de vista divergentes, negociar e se comprometer a encontrar um acordo comum.

O multilateralismo é do interesse de nações pequenas, que se beneficiam por terem regras e instituições internacionais acordadas, onde suas vozes podem ser ouvidas; como também é do interesse de países poderosos, pois permite a esses influenciar a ordem internacional, sem recorrer a múltiplas demonstrações unilaterais de seu poderio econômico e militar. Os estudos mostram que essas ações unilaterais, tendem a ser caras e de eficácia limitada e temporária, daí a importâncias das instituições internacionais.

A importância da cooperação multilateral pode ser vista de forma mais visível quando essa cooperação é interrompida. O relatório cita que a relativa ausência de organismos multilaterais regionais no Oriente Médio nos últimos anos, é uma das causas das contínuas tensões, conflitos e instabilidade na região.

Na última década, houve um declínio da confiança e eficácia das instituições internacionais, na capacidade de cooperação multilateral para resolver os desafios contemporâneos. Além disso, ideologias protecionistas ganharam popularidade nos últimos anos e certos governos começaram a questionar a conveniência de ter um sistema baseado em regras internacionais para administrar o comércio global. Esses governos, começaram então a minar ativamente as instituições internacionais. O conflito que estamos vendo entre os Estados Unidos e a China, tem sido a manifestação mais visível e economicamente mais prejudicial disso.

Outras questões urgentes são apontadas no relatório, como o movimento em massa de migrantes e refugiados, bem como a ameaça representada pelo terrorismo, as mudanças climáticas, os conflitos no oriente médio, entre outros. A pandemia da COVID-19 corre o risco de piorar esta situação, se os países não se comprometerem com uma recuperação resiliente e consciente. Nada pode ser resolvido por nações agindo sozinhas, por mais poderosas que sejam. Todos exigem cooperação multilateral.

Particularmente no contexto da COVID-19, o relatório mostra o caminho para a cooperação multilateral, essencial para a manutenção da estabilidade econômica global de longo prazo. A COVID-19 não reconheceu fronteiras e está deixando um custo devastador; em primeiro lugar na vida humana, mas também em termos de crescimento econômico, instabilidade política e desigualdade social.

Por que o Multilateralismo é Importante

O relatório cita alguns pontos importantes na defesa do multilateralismo. O primeiro é que ele previne conflitos. As Nações Unidas e outras instituições multilaterais foram criadas após 1945 como resultado da devastação causada pela Segunda Guerra Mundial, e por determinação dos líderes mundiais de impedir que tal destruição aconteça novamente. O documento cita os trabalhos do Conselho de Segurança das Nações Unidas, da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

O segundo ponto é o de que o multilateralismo lida com ameaças comuns onde a ação interna se mostra insuficiente. O documento cita os exemplos do surto de SARS em 2003, do Ebola na África Ocidental nos últimos anos, nos esforços de vacinação contra a varíola e a poliomielite, e mais recente o papel da OMS e de outras organizações internacionais na pandemia da COVID-19. Em todos eles, as organizações internacionais deram contribuições essenciais para conter os surtos e prevenir consequências globais potencialmente devastadoras.

O terceiro é que o multilateralismo contribui para a preservação de um planeta sustentável. A crise climática é uma ameaça existencial para a humanidade. Essa ameaça global só pode ser resolvida por meio da cooperação internacional, já que mesmo os maiores países emissores de carbono não podem deter as emissões globais por meio de ações unilaterais. Para o grupo The Elders, o Acordo de Paris sobre mudança climática foi um importante passo à frente no nível dos estados-nação. Os processos multilaterais separados sobre a biodiversidade e os oceanos também são aspectos cruciais da resposta global às ameaças ambientais, assim como os processos multilaterais também podem ser úteis na coordenação da regulamentação global do desenvolvimento de tecnologias projetadas para ajudar a prevenir as mudanças climáticas e limitar seus impactos, como também na facilitação da introdução dessas novas tecnologias em nível global.

Por fim, mas não menos importante, o documento afirma que o multilateralismo contribui para o fortalecimento da sociedade civil e dos direitos humanos. O relatório mostra que o crescimento do multilateralismo não estatal se refletiu no crescimento, na escala, e na influência das alianças da sociedade civil transfronteiriças nas últimas décadas. A promoção dos direitos humanos é um exemplo de como essas alianças transfronteiriças têm um impacto importante, levando ao desenvolvimento de um movimento de direitos humanos, incorporando organizações de base de todas as partes do mundo.

Nesse sentido, a internet tem sido um fator contribuinte significativo, criando um mundo muito mais interconectado, facilitando o desenvolvimento e a mobilização de redes globais de ativistas e cidadãos. O relatório lembra que a internet é um bem comum global crítico e requer proteção por meio de coordenação multilateral. O crescimento dos movimentos globais da sociedade civil continua sendo um caminho promissor para fortalecer a cooperação global no futuro.

A Proposta do Grupo The Elders

Como forma de defesa ao multilateralismo, o Grupo emitiu cinco recomendações para os líderes globais:

  1. Um novo compromisso claro com os valores e responsabilidades consagrados na Carta das Nações Unidas, para salvar o mundo do flagelo de uma guerra.
  2. Redobrar esforços para assegurar que as Nações Unidas sejam capazes de cumprir seu mandato de “Centro para harmonizar as ações das nações,” como meio de resolver coletivamente os problemas globais mais urgentes.
  3. Fortalecer os Sistemas de Saúde Global: ação decisiva e sustentada, e apoio financeiro para fortalecer os sistemas globais de saúde, incorporando resiliência e planejamento de longo prazo em nível global, em linha com as recomendações do Conselho de Monitoramento Global.
  4. Ambição Climática: aumento da ambição multilateral sobre a ação climática, redução de emissões e financiamento para uma transição sustentável e justa para uma economia de carbono zero até 2050.
  5. Mobilizar apoio para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: fazer um esforço global sustentado para mobilizar cidadãos, sociedade civil, empresas e outras partes interessadas, para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e garantir um futuro mais justo para a humanidade.

O documento é bem realista quanto ao futuro do multilateralismo. Para o grupo, é necessário ser flexível e não presumir que os arranjos moldados há 75 anos, quando a segunda guerra mundial se aproximava do fim, devam ser preservados intactos em sua forma atual para a perpetuidade.

À medida que os países se adaptam a um mundo pós-COVID-19, que provavelmente terá novos desafios globais que podem exigir respostas multilaterais inovadoras, abordar essas questões com eficácia e desenvolver um consenso renovado sobre a cooperação multilateral, provavelmente será um processo lento e árduo para os defensores do multilateralismo.

Considerações

A conclusão óbvia ao ler o documento é a de que para manter a estabilidade da economia global, é essencial mais cooperação multilateral, e não menos.

Nas condições atuais, quando algumas empresas multinacionais, especialmente no setor de alta tecnologia, têm mais poder econômico e aparente influência política do que alguns estados-nação, talvez não seja surpresa que façam lobby por uma estrutura regulatória mínima. No entanto, uma economia global malgovernada provavelmente terá resultados piores no longo prazo, quaisquer que sejam os lucros de curto prazo, e será muito mais vulnerável a futuras crises econômicas e instabilidade política. O multilateralismo é um canal que pode trabalhar na regulação global satisfatória para todos.

Como aponta o relatório do The Elders, o multilateralismo só pode ser eficaz com o consentimento dos cidadãos comuns ao redor do mundo e seus governos, e é somente por meio do multilateralismo eficaz que o mundo será capaz de enfrentar os imensos desafios que certamente virão ao longo do século 21.

Até mais!

[1] Hope for a sea-change: Why multilateralism must reshape the world after COVID-19, June 2020.