Economia e Inovação

Por: Sudanês B. Pereira

Economista, com formação na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Mestre em Geografia (desenvolvimento regional) e Especialista em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Experiências no setor governamental (municipal e estadual), setor privado (Associação Comercial Empresarial de Sergipe - ACESE e Federação do Comércio de Bens e Serviços e Turismo - Fecomércio), foi professora substituta no Departamento de Economia na UFS, pesquisadora e uma das fundadoras do Núcleo de Propriedade Intelectual, hoje Cintec-UFS.

Globalização com Restrições Comerciais, é possível?

27/04/2023
Imagem de Freepik

Desde a década de 70, quando a globalização decolou, as empresas e suas cadeias de suprimentos se deslocavam pelo mundo conforme os benefícios fiscais oferecidos, a mão de obra barata e a verticalização da oferta. Os eventos recentes (guerra comercial entre EUA e China, a Covid-19 e o desabastecimento de diversas cadeias produtivas importantes, a guerra Russia-Ucrânia acelerando outras tendências etc) fizeram mudar toda essa lógica, apontando para uma nova globalização. As empresas estão procurando mercados mais próximos de suas bases geográficas que ofereçam benefícios em termos de economia de custos, além da velocidade e segurança do suprimento.

A tendência de aproximação (nearshoring) ainda está no início. A movimentação das cadeias de suprimentos leva tempo para impactar os fluxos de capital. Segundo o artigo da Global X “Nearshoring and the New Countries Driving Growth in Emerging Markets”, o movimento de nearshoring provavelmente beneficiará novos setores ao longo do tempo, como assistência médica, energia verde, hardware e baterias. Com o tempo, à medida que as bases de produção são estabelecidas, isso deve ajudar a aumentar a renda local, o que poderia ter efeitos diretos nas economias, não apenas em relação a empréstimos/financiamentos, mas também para consumo doméstico, turismo etc.

Um estudo da Boston Consulting Group (BCG), “The Unwinding of Global Tech Supply Chains”, aborda como as cadeias de fornecimento de tecnologia estão se reordenando não somente pelo movimento do nearshoring, mas, principalmente, pelas novas políticas das principais economias do mundo - EUA, China, União Europeia. Para empresas que dependem de importações ou exportações globais de tecnologias consideradas sensíveis ou estratégicas, as novas regras impostas pelas políticas governamentais estão criando desafios e incertezas.

As Restrições Comerciais, as Tecnologias e as Cadeias de Suprimentos

Até então, as “forças do mercado” eram os principais impulsionadores do planejamento corporativo. Agora, políticas nacionais projetadas para incentivar setores-alvo e proteger vantagens tecnológicas estratégicas são cada vez mais predominantes. O resultado é uma escalada de ações em que as restrições comerciais e as políticas industriais de um país fazem com que outros países respondam - efeito dominó. Segue alguns exemplos abaixo:

(1) Os EUA estão implementando controles de exportação para limitar o acesso da China aos elementos mais avançados da cadeia de valor de semicondutores. As restrições, implementadas em outubro de 2022, restringem o acesso das empresas chinesas a designs e chips avançados de semicondutores de IA acima de determinados limites de desempenho. As restrições também limitam o acesso a ferramentas de fabricação e peças para chips avançados. Em agosto de 2022, o presidente dos EUA, Joe Biden, assinou o CHIPS and Science Act, fornecendo US$ 39 bilhões em incentivos para promover a resiliência na fabricação de semicondutores. Não é só isso, para os EUA, “tecnologias relacionadas à computação, biotecnologia e tecnologia limpa são verdadeiramente ‘multiplicadores de força'” e “a liderança em cada uma delas é um imperativo de segurança nacional”.

(2) A China, em seu 14º Plano Quinquenal (lançado em 2021), acelerou as políticas industriais para a indústria doméstica de semicondutores. Em outubro de 2022, o presidente Xi Jinping pediu à China que “cultive novos motores de crescimento, como tecnologia da informação de última geração, inteligência artificial, biotecnologia, novas energias, novos materiais, equipamentos de ponta e indústria verde”, e “acelere os esforços para alcançar maior autoconfiança e força em ciência e tecnologia.”

(3) A União Europeia (UE) deve aprovar uma legislação em 2023 que visa aumentar a participação de mercado global das empresas europeias de semicondutores para 20% em dez anos. Esse esforço seria apoiado por US$ 30 bilhões a US$ 50 bilhões em financiamento de fontes públicas e privadas. Como disse a presidente da UE, Ursula von der Leyen, em 2019, “devemos ter domínio e propriedade de tecnologias-chave como computação quântica, semicondutores, IA e blockchain”.

(4) Além disso, a Holanda e o Japão, geralmente seguindo o exemplo dos EUA, implementaram controles de exportação visando a indústria chinesa de semicondutores. O Japão também aprovou US$ 6,8 bilhões em financiamento para apoiar empresas domésticas de semicondutores. E a Índia destinou US$ 10 bilhões para incentivar a fabricação doméstica de semicondutores. Fonte: BCG. The Unwinding of Global Tech Supply Chains, march 22,2023.

Segundo a BCG, embora haja muita incerteza sobre os detalhes de políticas no futuro, os incentivos ou intervenções governamentais provavelmente continuarão em três tipos de oferta de tecnologia correntes: IA e semicondutores de código aberto; Computação quântica; e Tecnologias industriais, como energia limpa e biotecnologia.

Os estudos mostram que as cadeias de suprimentos enfrentarão pressões diferentes, dependendo do setor. Veja abaixo o mapeamento da BCG com os riscos e desafios para cadeias de suprimento de tecnologias específicas, considerando as restrições de governos.

(1) Indústrias cujas cadeias de suprimentos têm implicações para a segurança nacional – especialmente produtores de tecnologias de uso duplo, como semicondutores ou inteligência artificial, que podem ser usadas tanto para fins militares quanto civis – provavelmente serão forçadas a mudar substancialmente. Outras ofertas de uso duplo incluem certos insumos de produção, como terras raras ou outros metais e os chamados materiais críticos, que podem ser usados tanto em sistemas militares quanto em produtos de consumo. Os governos podem buscar políticas direcionadas para garantir segurança, vantagem geopolítica e resiliência.

(2) As cadeias de suprimentos em áreas consideradas estratégicas, como biotecnologia, produtos farmacêuticos e energia limpa, podem precisar ser reforçadas ou construídas do zero em novas geografias/localidades, pois os governos buscam a resiliência da cadeia de suprimentos ou a competitividade econômica em setores onde a inovação desempenha um papel importante.

(3) Indústrias sem implicações óbvias de segurança nacional ou criticidade estratégica (como indústrias baseadas em commodities) provavelmente permanecerão otimizadas para custo; no entanto, para equilibrar o crescimento e a resiliência, as empresas desses setores podem diversificar suas redes adquirindo suprimentos de outras geografias/localidades de baixo custo. A única preocupação das indústrias dessa categoria deve ser a de ter seus produtos interrompidos em uma disputa geopolítica mais ampla, como ocorreu em inúmeras disputas comerciais anteriores.

O Retorno da Política Industrial

Considerando todos os aspectos da nova globalização, das tensões comerciais e da segurança nacional, os governos estão enxergando as tecnologias avançadas em setores emergentes como críticas para a competitividade econômica e segurança nacional. Nesse sentido, os governos passaram a olhar a política industrial como uma estratégia de desenvolvimento. O que já está sendo planejado:

(1) O mercado acumulado de 2020 a 2050 para tecnologias limpas (que permitem veículos elétricos [EVs], por exemplo) pode chegar a US$ 24 trilhões a US$ 75 trilhões, dependendo do ritmo e da escala da transição. Os governos estão adotando políticas industriais que aceleram a transição de baixo carbono enquanto reconstroem a manufatura.

(2) Impulsionada pelos avanços em computação, IA e nanociências, a biotecnologia promete permitir o progresso em setores como agricultura, produtos farmacêuticos e produtos químicos. A “bioeconomia” emergente ajudará a gerar mais de US$ 30 trilhões em atividades econômicas nos próximos 30 anos.

(3) As estimativas para o investimento do governo da China em biotecnologia em 2015-2017 foram de até US$ 100 bilhões. Enquanto isso, os EUA pretendem promover a inovação em biotecnologia, com US$ 2 bilhões em financiamento. O Japão lançou seu primeiro fundo de investimento governamental dedicado à segurança econômica, visando biotecnologia junto com IA e tecnologia quântica.

Segundo o estudo da BCG, os players devem se preparar para uma variedade de riscos que provavelmente surgirão das políticas governamentais e do comportamento do cliente. Veja a figura abaixo com as áreas tecnológicas identificadas como estratégicas com potencial de intervenção governamental.

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Fig. 1. Áreas tecnológicas identificadas como estratégicas com potencial de intervenção governamental

Para ficar atento

A globalização está passando por um processo de mudanças, e com ele as novas formas de acumulação de capital - a economia digital está no centro disso tudo -, a possibilidade de uma nova governança global com novos atores.

Não obstante as diversas ações de restrições comerciais sendo executadas por governos, penso que é possível uma nova globalização com novos parâmetros de comércio global, não necessariamente restrições, claro que regulamentações deverão existir, o jogo está apenas começando. É óbvio que toda mudança sempre vem com os grandes players (sejam empresas ou governos) liderando e apontando novos caminhos. Uma política industrial é uma estratégia de desenvolvimento, não é restrição comercial.